As dimensões continentais do Brasil, seus diferentes contextos culturais, e a variedade de modos de criação de espetáculos teatrais dificultam a apresentação de uma cartografia do teatro de animação aqui produzido. No entanto, para mim é prazeroso e desafiador encontrar eixos de reflexão que estimulem a compreensão sobre essa arte. As reflexões se fundamentam em minhas andanças por alguns dos inúmeros festivais de teatro de títeres que se realizam no país e em espetáculos que permanecem em temporadas em teatros-casas de espetáculo. Trata-se de um modo particular de ver essa realidade que seguramente não cobre a totalidade do território brasileiro e por isso está sujeito a imprecisões.
É possível perceber, hoje no Brasil a existência de pelo menos dois eixos norteadores desses processos: o que denomino de recriação do regional/popular, em que os espetáculos se fundam em diferentes manifestações das culturas populares brasileiras; e o identificado como Intertextualidades, dramaturgias desconstruídas, e cenas fragmentadas, em que predomina a cena multifacetada, cujas teatralidades se situam num território miscigenado de diversas linguagens artísticas contemporâneas.
Destaco essas duas facetas da criação do espetáculo sem preocupação de que sejam as formas mais recorrentes. Elas são importantes porque só poderiam existir nas atuais condições em que vivemos e seriam impensáveis há 40 anos atrás quando predominava a prática de um teatro de títeres mais homogêneo, entendido aqui como preconiza Henryk Jurkowski (2008), ou seja, um teatro não contaminado por outras formas de expressão artística e no qual predominava a presença dos títeres.
1) A recriação do regional/popular
A apropriação de elementos da cultura regional/popular na montagem de espetáculos de teatro de bonecos não é fenômeno recente. Desde os anos 60/70 essa prática é comum. Alguns elementos que nortearam a criação de espetáculos naquela época ainda hoje são utilizados, como, por exemplo, a recriação de lendas, folguedos e falares do povo. Desde então, os espetáculos que se mantêm vivos e obtém repercussão são os que, ao invés de transpor expressões populares para a cena, as recriam, reinventam, incluindo elementos que tornam o espetáculo universal, ampliando as fronteiras do seu sentido e compreensão regional.
O novo nesta prática reside no fato de contribuírem para o fortalecimento de identidades, ultrapassando os limites do que se poderia configurar como espetáculo circunscrito às culturas locais, como algo pitoresco ou exótico.
Exemplos dessa prática são os trabalhos de Chico Simões, Augusto Bonequeiro, Fernando Augusto Santos, e Valdeck de Garanhuns. Coloco estes artistas numa só moldura porque ainda que existam diferenças na forma de criar, pensar e apresentar seus trabalhos, eles têm em comum a prática da recriação do popular/regional.
Personagens como Tiridá, Benedito, Simão, entre outros, presentes nos seus espetáculos reforçam e colaboram na construção de identidades, uma ideia de pertencimento que vai se esboçando e realizando na conduta das personagens e na poética dos espetáculos. A ideia de “diferença” que permeia a forma de ser destas personagens e o universo na qual se situam é vista e tratada como elemento que constrói um jeito de ser, outro modo de ver e estar no mundo. A diferença é mostrada como irreverência, insubordinação diante de uma realidade adversa, um jeito de falar e se comportar que além de peculiar, denota uma forma de resistir às injustiças sociais e políticas e à padronização cultural.
Os Beneditos, Simãos e Tiridás, reforçam a importância da diferença e colaboram, insisto, na construção de identidades, evidenciando que não existe uma cultura, mas muitas culturas. Contribuem assim para a compreensão de existência do pluralismo cultural como elemento fundamental, enriquecedor e democrático.
Um dado novo presente neste tipo de trabalho também aparece no comportamento de diretores e dramaturgos que atuam como bricoleurs e redefinidores de expressões. São artistas que circulam num universo cultural que dominam e também dele fazem parte, e ao se apropriarem de elementos dessa cultura para o espetáculo demonstram, como afirma Peter Burke, que “as fronteiras entre as várias culturas são tênues” (1995:20).
2) As dramaturgias desconstruídas, cenas fragmentadas e intertextualidades
Estes procedimentos nascem do desejo de romper com as convenções de representação e construção do enredo. Para estes grupos, já não interessa o modelo clássico que repousa sobre a evidente clareza de informações da narrativa. Neste tipo de proposta importa estimular o espectador a fazer seus quebra-cabeças, cujas peças são dadas aos poucos, possibilitando a ele ir formando seu quadro, compondo com seu imaginário. A ideia de que o espectador pode, ele mesmo, a partir de estímulos apresentados, criar uma narrativa própria, conta principalmente com o seu envolvimento emocional no espetáculo.
O trabalho da construção dramatúrgica consiste em percorrer outro caminho, diferente, tendo um tema central como princípio norteador. Nega-se o texto racionalista, a ideia de que o conhecimento e a experiência significativa só são possíveis através do pensamento lógico, do discurso e do intelecto. Exemplos deste tipo de trabalho são espetáculos como: A Infecção Sentimental Contra Ataca e Buster, do XPTO; Ubu Rei, do Grupo Sobrevento; Flor de Obsessão e Olhos Vermelhos, do Pia Fraus; Livres e Iguais, do Teatro Sim, Porque Não?; A Tecelã, do Grupo Caixa do Elefante; Dicotomias – Fragmentos Squizofrê, do Grupo Casulo, Um Príncipe Chamado Exupéry, da Cia Mútua.
A economia ou mesmo a eliminação de palavras, o dizer com ações e gestos, exige trabalhar com a clareza do gesto e do movimento. A força do trabalho está na capacidade de o ator-animador expressar e transmitir ao público estados de rara intensidade emocional. Com isso, o tempo dos ensaios é ampliado porque ali se exige não só o espaço de aperfeiçoamento da cena, mas principalmente de construção da partitura de gestos, ações e movimentos que definem a dramaturgia.
As peças não têm apenas uma situação principal, um conflito central, nem personagem protagonista. Predomina a definição de um assunto, o tema e em torno dele giram situações, ações e imagens. Mas também ocorre a justaposição de cenas sem relação aparente, imagens e ações desconexas.
A ruptura com a narrativa linear, com princípio, meio e fim, na qual se conta uma história, onde cada acontecimento é encadeado com ação acontecida anteriormente, é substituída por uma proposta desconstruída, desordenada, situações que ora apresentam uma sequência, mas em seguida é abandonada, interrompida por uma imagem em movimento que possibilita ao espectador imaginar, refletir ou somente desfrutar da beleza da imagem contrastando com situações antes mostradas.
Outra faceta que caracteriza uma nova forma de criação do espetáculo pode ser definida pela intertextualidade. Trata-se de um procedimento que busca, em fontes existentes, os dados e elementos que fazem parte do texto ou da cena. Do ponto de vista da dramaturgia, consiste em recolher trechos de textos de diversos autores, nem sempre textos dramáticos, e que postos numa disposição dão um novo sentido, às vezes, diferente da intenção com que foram originalmente criados. A unidade temática é formatada pelo dramaturgo ou diretor que, ao utilizar material já existente assume a posição de “coletor”, e com frequência usa o recurso da colagem e negligencia o encadeamento lógico de ideias.
Sob este aspecto a intertextualidade “se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (Kristeva, apud RÖHL, 1997:29). Tal procedimento também se caracteriza pela interface com outras linguagens artísticas como a dança, artes plásticas, imagens gravadas/filmadas produzindo surpresas, dúvidas e certo distanciamento no público. Para Cohen, que prefere a expressão “intertextualidades”, elas acontecem “entre a palavra, as materialidades e as imagens, nas formas antes que nos sentidos, nas poéticas desejantes que dão vazão às corporalidades, às expressões do sujeito nas paisagens do inconsciente e em suas mitologias primordiais” (2001:106). São espetáculos que abandonam o uso do boneco (sobretudo o do tipo antropomorfo) e utilizam formas, objetos, imagens.
Exemplos deste tipo de procedimento são as peças Submundo dirigida por Luiz André Cherubini; A chegada de Lampião no inferno, de Miguel Vellinho; Primeiras Rosas, em que Beto Andreetta, o idealizador do espetáculo, convida outros quatro diretores e os responsabiliza pela a criação de cenas com diferentes técnicas e poéticas e no conjunto formam o espetáculo baseado na literatura de Guimarães Rosa.
Nesta modalidade de espetáculos é interessante observar que, a identificação do público também se dá na medida em que lembra de trechos dos textos de autores conhecidos; reconhece imagens de filmes, ou obras plásticas, visuais presentes na cena.
Para finalizar, é preciso evidenciar que tais facetas que caracterizam alguns processos de criação de espetáculos são cambiantes, estão em permanente movimento e não raro, se interpenetram, podendo estar às vezes mais, às vezes menos visíveis. E isso torna o cenário do teatro de animação brasileiro diversificado e estimulante.
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Referências Bibliográficas
COHEN, Renato. “Teatro brasileiro contemporâneo: matrizes teóricas e interculturalidade”. In: Sala Preta – Revista de Artes Cênicas – ECA/USP. São Paulo, N.1, 2001.
JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses. La marionette au XXe siècle. Charleville-Mèziéres: Institut International de la Marionnette/ L’Entretemps, 2008.
BURKE, Peter. A Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
RÖHL, Ruth. O Teatro de Heiner Müller. São Paulo. Perspectiva, 1997.